FENDA - o manifesto

Fenda - é o início de um movimento artístico, que pretende conjuntamente com este manifesto, colocar o dedo na tua ferida, e abordar as variadíssimas zonas do desconforto: a zona do autor ou artista; a zona da obra de arte em si mesmo; a peculiar zona da fenda, intermédia zona do meio onde o processo de pensamento, criação e execução se desenvolve; a zona do público espectador, observador ou ouvinte; e a zona dos produtores, críticos e curadores. Porém, este manifesto não é uma reivindicação, mas apenas uma declaração de princípios e intenções que, persuasiva, convoca livremente a uma determinada ação ou posição. Ele inclui a denúncia de alguns problemas, e contém argumentos que fundamentam um ponto de vista, uma visão poética ou estética da arte, dos artistas e do seu Mundo. Contudo, este manifesto desdobrar-se-á de uma forma não acentuadamente metódica e claramente ordenada, mas com tendência assistemática, por entre zonas, de modo a poder corresponder coerentemente à mensagem do seu conteúdo. Se este manifesto, este movimento artístico e a sua flash mob, contém algo, que intrínseco, a todos une e a todos interrelaciona, será a noção de uma obra de arte irresistivelmente total. Pois tanto este evento, como este manifesto e a sua fenda, pretende apelar a todos os sentidos e significados, incluindo diferentes formas de arte, tais como: pintura, poesia, música, dança, performance, teatro, fotografia, vídeo, etc. Deste modo, todas as formas de arte se inclinam para uma dimensão comum: a fenda, que se abre enquanto processo, enquanto acontecimento ação, e enquanto contemplação ou ato mental, pois o seu código é múltiplo, abarca qualquer especialidade em particular. E sendo um desafio, este manifesto não é um ataque, é uma prenda, que deseja preservar a liberdade em todas as suas dimensões. Não sendo um manifesto político, é muito mais do que isso, é uma estética que se adequa a qualquer singular ética, do autor ou artista que deseje abdicar do poder do outro. Não é anarquista, pois convoca o artista a agir dentro da sua particular ordem e modo próprio de atuar. A fenda é um termo que contém em si mesmo vários sentidos e interpretações. Ela contém a raiz da ferida e a raiz da sua própria cura. E deste modo, este manifesto pretende ser um catalisador para os artistas de todas as áreas. Criar um impacto, ruturas, rasgos, brechas, mas não sem qualquer tipo de orientação. E a primeira sugestão, é sublinhar desde já, a necessária importância de uma intenção ou propósito, como sendo uma condição essencial para criar, uma intencionalidade que se relaciona, com o singular e original processo de cavar do próprio autor ou artista. A segunda, que para conquistares a zona da fenda e superares o paradoxo ou as dicotomias do entre, deves afirmar-te e continuar a afirmar-te em cima da tua própria afirmação, para que deste modo o teu desdobramento aconteça, deixes de ser o mesmo e deixes de ser uma imagem (mesmo que inconsciente) dos outros. Ou seja, renasce intencional ou propositadamente, e continua a afirmar o teu processo sempre, de desdobramento em desdobramento, com a tua vida e a tua fenda. Selecionas e expulsas, rasgas e abres fissuras, cavas com a tua pá, e assim, vais definindo e vivendo afirmativamente a verdade que procuras, pois acima de qualquer estado mental ou psicológico, afirmas a existência da tua obra. A terceira, é a de que livremente, conscientemente e responsavelmente, é o artista que deve pensar e definir a sua própria definição do que para ele significa arte. A quarta, que deve estar ciente de que uma distinção entre arte e entretenimento existe, de que quem entretém também pode fazer arte, porém, tem que saber distinguir uma da outra quando a executa. E a quinta, é do mesmo modo, a distinção entre arte e estética. Que a estética está relacionada com os olhos de quem vê, com o sujeito psicológico e a sua receção e apreciação daquilo que aos seus olhos é belo, e provoca prazer, que ela está relacionada com o gosto de cada um. Mas que a arte, ainda que relacionada com a estética, dá maior prioridade ao objeto, à coisa, qualquer que seja a obra de arte em si mesmo. Ou seja, tu podes não gostar e simultaneamente entender que pode ser uma obra de arte. É o que traduz a seguinte frase: primeiro estranha-se e depois entranha-se.

A fenda tudo integra, mas não adere como fundamento absoluto a nenhuma especifica teoria da arte. E em simultâneo, agrega e inclui todos, mas não adere especialmente a um movimento específico, género musical ou estilo poético, plástico, visual ou dramatúrgico, seja ele: o romantismo, o impressionismo ou simbolismo, o cubismo, o fauvismo, o expressionismo, o abstrato ou o figurativo, o futurismo, o dadaísmo, o niilismo, o realismo ou o surrealismo, o onírico ou a ficção, o informalismo, ou híper realismo, ou o pop, o conceptual ou minimal, o blues, o jazz, o progressivo, o alternativo, o experimental, o rock, o psicadélico ou eletrónico, indie ou não, ópera ou clássico, erudito ou contemporâneo. Pois a presença de uma fenda, é o tão aguardado regresso, da esperada obra total, é o despontar visceral, de um novo renascimento, é a frescura das cinzas, de uma doce morte fatal. Um cavador de fendas tanto pode ser vanguardista como transvanguardista. Tanto pode reduzir realidades como aumentar perceções irreais, pois a fenda é heterogénea na sua diversidade de infinitas possibilidades de criação total, porque ela tem o poder de abraçar estilos desiguais e distintos sem os categorizar. Para a fenda, os objetos, os sons e os silêncios, as cores, as palavras e os movimentos, são acima de tudo, coisas em si mesmas, que sem coordenadas, habitam livremente na fenda, que sendo uma ferida real e ontológica, como tal, existe como ser independente, como ser que tem um sentido, porém, sem finalidade. E por isso mesmo, consequentemente, não contém princípios absolutos ou factos evidentes. A lógica não entra nela, mas apenas a possibilidade de um entendimento que serve a sensibilidade e o caos que a precede. A fenda é a verdadeira morada do pensador e artista, não tem regra nem apela a uma necessária transgressão. Ela constrói e desconstrói, contém o símbolo do caos, mas também o significado da ordem. Nela tudo se decompõe em composições concluídas ou inacabadas. A fenda é como um figurado rasgo numa tela, numa guitarra, num poema. É uma brecha executada por aquele que tem a intenção de cavar em si mesmo, e na obra que executa, para através da fenda, sacar a alma de duas verdades. Com a sua pá, ele é o cirurgião que cava a verdade e a sua raiz, que não significa a tua província, a tua origem, passado histórico ou cultura primitiva, significa que algo nasce e cresce na horizontal, aos teus pés, no teu próprio caminho. A fenda remete-nos para o eterno vácuo de uma peculiar abertura. Ela é sinonimo de ubiquidade, de ser e estar em dois espaços em simultâneo, pois ela contém uma certa verdade quântica. Ela vive no entre, ela é o espaço daquilo que foi, daquilo que é, e do que ainda vem. Está para além da própria imaginação e para aquém do conceito. E perfura com tal profundidade, que deixa para trás de si, enterrado, qualquer facto ou dado empírico, que antes validado, recebe agora o batismo de pura ilusão. Porque a fenda está para lá de, mas também precede a própria vida. A fenda é o lugar de pura criação ao mais alto nível. Tocando-lhe com o dedo, o artista provoca a fonte da criação. E cavando profundamente com a sua pá, pincel, instrumento musical, caneta, voz, ou corpo, a verdade de uma verdade ou a verdade de si própria, camada sobre camada, sensação sobre sensação, afeto sobre afeto, pensamento sobre pensamento, a alma da imagem que escolhe pintar, da personagem que escolhe interpretar, da musica que deseja compor, do poema que pretende proclamar, trazendo à tona essa peculiar verdade, deste modo, o artista torna-se na própria fenda, mistura-se com o seu espaço caótico, combate-a e namora-a intensamente, para ressurgir como cocriador da obra, que independente, se impõe e se apresenta. A fenda é o espaço que tudo consome e tudo contém. É onde tudo nasce e tudo renasce. É o espaço da criação total. É o habitat do artista. Não o seu estúdio real e material, mas a sua casa espiritual e energética, sensual e corpórea. É uma brecha onde as ideias e as sensações lutam e circulam aleatoriamente, à procura de um sentido, para a sua materialização do lado de cá. É onde as puras emoções livremente percorrem o corpo, os ossos, a carne e os nervos. É onde os novos afetos e ideias se criam. Ela é uma zona intermédia em muitos sentidos. É a zona do meio onde paradoxalmente e aleatoriamente, tudo se conecta, em faísca e em harmónica dissonância. A fenda é o espaço do autor ou artista e da sua obra, mas não é o espaço ou o local do público, espectadores, observadores ou ouvintes, porque o espaço peculiar da fenda é uma dimensão outra, onde um certo estado de espírito, singular e muito íntimo, sagrado e mental, mundano e real, existe, mas inacessível ao espectador comum, pois ela é o espaço distinto e privilegiado da criação artística, onde se processa o processo e a sua narrativa. Porém, o observador, pode aparentemente ver o processo criativo em movimento, sentir a energia, ver a sua aura, mas jamais poderá vivenciar a experiência em plena consciência, de como o artista vive essa realidade extraordinária, essa verdade cheia de intencionalidade. Dai que, a relatividade estética que provém do subjetivo e legitimo gosto do observador, da sua ideia de beleza, ou do seu próprio sentimento de prazer perante uma obra, pode estar muito longe daquela profunda verdade. Daí que, em primeiro lugar, considere-se o verdadeiro valor dos artistas, pois quanto mais elevada uma obra, mais pequena ela aparece, aos olhos daqueles que não sabem voar. Rasgar uma fenda e penetrar na sua profunda ferida, é como visitar o inicio dos mundos. É um ato delicado, mas sem norma, que irresponsável aos olhos do senso comum, é uma necessidade que incorpora em si mesmo um ato de coragem e ousadia. Sim, é um paradoxo, é uma necessária liberdade, pois o seu alcance exige que o artista entre na fenda, no portal, na janela, na frincha, na brecha, que de algum modo ultrapasse as suas limitações impostas por si e pelos outros. Então, a solidão já não mais provoca dor, a ignorância desvanece-se, a liberdade seduz, com ou sem asas, e a sabedoria já não mais faz sentido, apenas o caminhar por entre pedras do mesmo sangue. Ultrapassar todas as impostas restrições, que como anéis circundantes limitam, segregam, restringem, escravizam e manipulam, é ser verdadeiramente irreverente e adotar a postura equivalente à de um resistente, de uma corajosa e protetora resiliência, caso contrário, aquela Aura da arte, há já muito tempo perdida, agora em extinção, perder-se-ia de uma vez por todas, na mediocridade das massas, que alegremente desejam a ilusão e o mero entretenimento. Não, não são as massas nem é o mercado que determina a arte. Se a arte tem alguma essencial função, é a de existir e de se recriar de fenda em fenda, através da sua raiz, sendo a obra e a intenção do autor ou artista os seus únicos filhos. Colocar o dedo na fenda é também colocar o mesmo na ferida da sociedade, no público e nos divulgadores de opinião, que julgam dominar a indomável e insondável fenda. O artista ao habitar na fenda, que se encontra entre a sua arte e a sociedade, tem que pisar os dois chãos em simultâneo, mas não deve proclamar o nome da arte em vão. Arte não é entretenimento, e nem a cultura em geral é necessariamente arte. A estética por si só não é arte, mas apenas o direito que todos têm de escolher aquilo de que mais gostam, aquilo que mais prazer lhes dá, aquilo que consideram ser aos seus olhos, o mais belo. Contudo, isso não chega para alguém eleger ou candidatar uma obra a ser obra de arte. O conceito ou definição do que é arte está tão aberto, que qualquer dia até uma vaquinha mimosa faz arte, desde que a maioria goste. Arte também é prazer, mas não é chocolate. Arte também é deleite, mas pode ser um vendaval para o qual não estejas preparado. A arte pode provocar-te peculiares sensações de alegria e bem-estar, mas também pode sufocar-te e afogar-te as ideias. E porquê? Porque ela é o resultado da intensa luta que o artista viveu com a sua obra, ao cavar as raízes na sua fenda, naquele local onde o artista se revela a si mesmo e se desdobra múltiplas vezes, onde afogado pelo cansaço, morre e renasce do nada, onde luta com a sua vida para te trazer algo de verdadeiramente valioso. Sabes o que é isso? Sabes a puta da dor de nascer necessariamente artista e não ter outra escolha? Por isso o verdadeiro artista de hoje, tem que rasgar as suas máscaras, aquelas que outrora serviram o poder, os média, e os seus interesses. Em geral, os artistas de hoje estão demasiadamente dentro da caixa e submissos de um mercado em ascensão. Mas o que acontece, é o mercado em ascensão e as fendas em extinção. Os artistas de hoje não podem ser obscenamente seduzidos pelo ar que os circunda, dentro ou fora de caixas. Pensar e criar fora da caixa normativa, é inversamente respirar o ar da tua própria fenda aberta. Uma vez lá, já fizeste o rasgo para a eternidade, e nunca serás pobre de espírito. Serás o Deus do teu próprio reino. Serás o criador de ti mesmo, e cocriador da tua obra. E cavarás tão fundo e tão amorosamente que rejubilarás a própria fenda. Acredita, não desistas nem pela tua mãe nem pelo teu filho, que ele mais tarde anunciará o teu reino. Se nasceste com fenda, fenda virarás. O único requisito ou condição é a tua própria intenção. Todas as correntes da arte e da literatura, da música e do cinema, são como raízes que se movem na horizontal, alimentando-se do núcleo de uma grande fenda, que sempre em convulsão incerta, aleatória, casual ou contingente, aglutina amorosamente em seus profundos braços, a integridade de um todo sempre incompleto. A fenda é como um oceano, e a sua abertura é o inicio de uma escalada, até à sua origem, até à fonte original. E beber dessa fonte é estar totalmente do lado de lá, em absoluto repouso. É a sensação de estares a percorrer o teu caminho com a certeza de que lá chegarás. Somos sagrados, profanos, idílicos e oníricos. E somos reais cavadores, de mente e coração aberto. Somos clássicos, românticos e críticos, mas não queremos intencionalmente uma transformação social ou qualquer outra redenção pela arte. Na sua elevação, ela não tem que necessariamente conduzir o observador a algum sítio com conotação transcendente. A fenda contem raízes, que ao rastejarem na horizontal, magnetizam e emanam em simultâneo. E a energia da palavra fenda manifesta o que está por vir. E manifestar é abanar, gritar, abraçar algo, semear sementes e cortar raízes, mas é também convidar e sustentar algo amorosamente, proclamar e desafiar a experiência e a consciência de um despertar da fenda, esse árduo e maravilhoso lugar que todo o artista necessita habitar. Nós sangramos energia e vibrámos com o cavar da fenda. E a favor do paradoxo e da contradição, abdicámos de uma suposta verdade absoluta, e de qualquer alienação, pois a fenda é a nossa eterna companhia. E na sociedade, o artista deve impor-se vertiginosamente, sem receios e sem falsas modéstias, pois para além da história geral, a única que se estuda no ensino, é a história da arte. A fenda é uma cisão com o passado, mas que o contém e integra, numa feroz superação em nome da arte, dos artistas e da sociedade em geral. A fenda não é revolucionaria nem reacionária, exige progresso, mas também exige ser conservada e restabelecida na sua Aura. Viajar para fora ou permanecer dentro da caixa é um termo já ultrapassado que não se aplica à fenda, pois se as caixas fecham, as fendas abrem. Se dada é nada e conceito é ideia, fenda é muito mais do que tudo isso, é tudo o que está antes e depois do nada de qualquer ideia. Fenda é fenda. E a minha, só por semelhança analógica estará próxima da tua. Então, fenda não é uma teoria geral ou conceptual, pois ela provém das minhas raízes, que horizontalmente se misturam com as tuas, ou não. Fenda é a diferença que se repete e transforma, particular e subjetivamente. Quanto mais amo e cavo na minha fenda, quanto mais a transformo, na raiz de futuros frutos, que cairão como sementes para novas fendas. E quanto à recetividade estética das obras de arte pelo público, esta é uma questão não meramente química, como a colisão de duas moléculas que se cruzam e se transformam, mas estará com certeza relacionada com uma certa correspondência energética e a sua intensidade. Quem cria a obra é o artista. E na sua singular fenda, uma energia peculiar corresponde ao artista e à obra. A obra é um ser que cresce independentemente, que se vai desvelando e auto posicionando com a sua autonomia própria. Ela passa a dominar o processo do autor ou artista com a ajuda da peculiar energia da fenda, que passa a envolver dois seres intencionais, a obra que nasce e o artista que morre para dar vida à obra. E essa criação concebida na fenda, seja em estúdio ou ao vivo, contém uma experiência que o público jamais poderá vivenciar em sua plena consciência, pois o observador, apenas vê o fenómeno, ou seja, a aparência energética, mas não o que se passa verdadeiramente no interior do artista e da sua fenda. O que acontece, é que, se o observador ou ouvinte, está ao mesmo nível energético que a obra emana, existe match, paixão ou amor pela obra. Mas se a intensidade do nível energético do espectador, que contém sensações, pensamentos, conhecimentos e intenções hermenêuticas, não está ao mesmo nível, não existe reciprocidade, não existe correspondência, não existe reconhecimento da obra, não existe atribuição do seu verdadeiro valor. E como o valor das massas, é a média da maioria, então, uma obra mediana ou medíocre, de grau médio, mais facilmente terá a aceitação popular dos mercados. Sendo que, deste modo, certa obra com níveis verdadeiramente altos e acima da média, vibrará apenas para alguns hermeneutas. O cavador de fendas pode ser pobre e não ter seguidores, mas gozará como ninguém, as prendas oferecidas pela fenda. Ora, neste sentido, quem inicialmente deverá decidir o que é uma verdadeira obra de arte, nunca deverão ser as massas e o seu mercado. A importância da fenda, dessa zona ou espaço intermédio, que se situa no entre, onde o artista age e flui com a sua obra, está relacionada com a atenção ou a apreciação que se dá ao chamado processo de criação, mas acima de tudo, à sua intrínseca singularidade energética. A fenda é o encontro entre o real e o ideal, e ser artista deve continuar a ser, e cada vez mais nos tempos que correm, um ato de resistência contra o absolutismo contagiante degradante e medíocre que é o mercado e as suas exigências, que apenas pretende colmatar necessidades, impostas e desenvolvidas pelo marketing desenfreado e colorido. Mais uma vez, a Aura tem que ser restaurada, pois a arte democratizou-se e em certo sentido muito bem, no entanto, perdeu a sua morada, deixou a sua casa e diluiu-se de tal modo que perdeu os sentidos, despiu-se tanto que foi completamente violada, despida a seduzir e a entreter ignorantes. Façamos uma distinção: a arte despe-se, mas não é uma puta. Abrir a fenda não é abrir as pernas. Fazer arte não é entreter nos tempos livres. Não é estar acorrentado às necessidades dos outros. É sim cavar tão fundo que até dói a alma. É cair prostrado sem respiração, no chão. É suor que em sangue espiritual, derrete a carne até aos ossos. Paradoxalmente, não há meio termo na zona do meio. Ela é também a maior fonte de paz e alegria para o artista. E quanto mais subjetivo e singular, mais objetivo é o artista na sua fenda, pois mais originalmente e efetivamente, explorará a sua própria visão poética. E deste modo, o artista pode ser um solitário explorador de fendas, que com ou sem influências legitimamente escolhidas, nunca deixa de ser autêntico, pois ao habitar na fenda, o artista afirma-se em todos os sentidos, desdobra-se e evita ser corrompido ou destruído. Ele é por definição o criador de novos mundos, de livres ações processuais, de intenções, de pensamentos, de sensações e renovados afetos. Contudo, ele deve cavar os seus próprios critérios sobre o que é ser artista, músico, poeta, ator, fotógrafo, etc. Se alguma definição nos agrada, é aquela noção de uma arte irresistivelmente total, pois mesmo que individualmente interligada por estilos diferentes e distintas personalidades, abraça em rede, as múltiplas e singularíssimas raízes num todo. A Aura da obra de arte deve renascer em si mesma e a fenda é o seu espaço. A sua morte foi apenas um aparente fenómeno. A sua falta de sentido deve ser restaurada já e agora, sem secretismos ou elitismos. E para que isso aconteça, o artista deve com a ajuda da sua intenção, incansavelmente cavar e cavar até à fonte, ou próximo das suas margens caóticas, informes, aleatórias e imprevisíveis. Pois se algum conhecimento da fonte pode ser traduzido em matéria plástica, sonora ou literária, este só se pode expor como resultado de uma intensa luta entre o sujeito e a sua obra, no espaço que é a sua fenda. Somos humildes para com a fenda e o seu poder de fecundar, mas não temos espírito servil para com a sociedade, não servimos de adorno para fim algum. Acreditamos na arte de autor e rejeitamos a mera decoração que apenas pretende preencher com ilusões as necessidades das massas, ou de alguns pseudointelectuais. Contudo, nós não reivindicamos, mas também não protegemos os vícios do sistema, mas apenas a nossa querida fenda, pois já pouco acreditamos em teorias gerais, preferimos o que traduz a nossa prática individual. O racional é apenas um instrumento, que o nosso pensamento utiliza, para voar bem mais alto ou bem mais fundo, à procura da nossa verdade. Qualquer paradoxo ou contradição é natural em nós, porque a fenda é um desbloquear para o desdobramento múltiplo, que em simultâneo, aparece e é. A intenção da Flash mob é ser um grito de amor à fenda e à sua abertura para o amorosamente desconhecido. Pois a verdade não se demonstra ou sustenta com lógica, a verdade pertence ao domínio do real que é a existência do ser. A validade lógica das coisas, não tem qualquer interesse para um cavador de fendas. A fenda já contém as forças essenciais ao artista, que protegido pela sua Aura, cria a sua imagem, composição, figura, a sua sonoridade, a sua personagem, o seu poema. À procura de novas sensações cava novos afetos. E todo o absurdo, é para nós um condimento afrodisíaco. E todo o desespero que é vivido em desdobramento, é uma maravilhosa ferramenta para polir ou afiar com amor, as arestas das superfícies a serem rasgadas. Toda a angústia geme de alegria quando submetida ao capricho do artista. A nossa inquietude supera o romantismo mais profundo e melancólico, pois quando silenciosa, ela dança por entre as raízes em movimento. A fenda não impõe coisa alguma ao artista, pois é o objeto ou a obra, que na sua realidade, se impõe, por si só, em autonomia. E o artista apenas se submete à sua obra, venera-a como a um filho, seu e da fenda. A zona da fenda nada tem de semelhante com o comum dos espaços. Mas o tão idolatrado processo de criação, desenvolve-se na zona da fenda, onde a contingência de possibilidades é total para o artista. Porém, a obra comanda pela sua necessidade impositiva. A sua imagem supera a própria razão, pois a imaginação sempre supera o entendimento. Na fenda nós abdicamos da mera ilusão de um iluminismo obscuro e dominante, para eleger uma outra luz que está algures no espaço do entre. E deixamos sempre, a nossa vulnerável inocência protegida no seu espaço, dentro da fenda. O único receio que nos acompanha, é o de não conseguir gritar suficientemente alto o amor à fenda. A fenda é agora a musa dos novos artistas. E nós, através da ousadia abdicámos do impossível. A nossa linguagem, tal como a fenda, é cheia de hiatos e ventos, mas é sincera, verdadeira. Na fenda, o artista amadurece o seu espírito, torna-se de novo criança, deixa os fronteiriços anéis de saturno e alimenta-se com sumos de liberdade. O seu ânimo desdobra-se num caminhante raio quântico, e a globalização transforma-se em fenda. Mas não somos orgânicos nem somos mecânicos, clarificados ou obscurecidos, não cremos no paraíso tão pouco nas trevas, somos luz e sombra em constante desdobramento. A nossa linguagem, múltipla em perspetivas, é acima de tudo autónoma, porque ela exige que sejas tu com a tua pá a cavar a tua fenda. Fenda não é erudição nem arcaísmo, não é tese nem antítese nem síntese, fenda é a descoberta de novas camadas rizomáticas para explorar. Mas não temos formula ou método para uma contemporânea expressão do mundo. As forças que aleatórias dançam na fenda, provêm do informe caótico que nos alimenta as obras. Sendo que, qualquer discussão proveniente da fenda, será em prol de uma linguagem novíssima, que no seu devir se quer atualizar. Literalmente, em certos aspetos, a fenda é contrária à famosa caverna, pois a luz que dela emana não provem necessariamente de cima, das ideias, porque não existe princípio algum que possa ser definido como a origem de seja o que for para lá do caos. Estamos fartos de teorias e fantasias cheias de certezas e evidencias com pouca verdade. Não acreditamos em teorias da felicidade, senão na minha própria, singular e única verdade a explorar. Acreditamos no paradoxo. Nos artistas que livres, encontram e cavam um determinado caminho que os liberta de tudo o resto, numa missão que se impõe como necessária liberdade, pois o cavador de fendas caminha pelo entre de qualquer contingência. É livre porque não tem outra escolha que não seja viver em arte. Sim, também somos novos vitalistas que não temem sequer a morte em vida. Morremos a todo o momento para que a obra nasça e sobreviva. Cavamos as vísceras e revolvemos o cérebro. Arrancámos o coração por vezes. Sangramos pelos cabelos o suor de uma luta tremenda, subliminar, de uma beleza inconcebível. Arrancamos os ossos às imagens, erradicamos afetos, amputamos movimentos e desenraizamos sons e palavras até hoje ausentes de qualquer poética. E de qual à priori provêm as energias, as forças, a criatividade que comanda o artista, a obra, e todo o processo? Estão na imagem que compus na minha mente, ou estão na guitarra, o material usado para libertar o som? Tudo isto, de onde provém? Da história? Da sociedade? De mim? Dos outros? A zona intermédia é uma junção entre o real e o ideal. É onde tudo morre e tudo renasce aleatoriamente, ainda sem formas, sem sentidos, sem intenções. São forças que imprevisíveis, são em si mesmo originais. É a zona da fenda que possui e é possuída. Ela é o impulsionador que sem princípio, estimula e acende as chamas da criação. Por isso as fendas têm raízes que se interligam e criam movimentos próprios, sempre em desenvolvimento e em rede. Sendo que a raiz de um pensamento parte sempre de uma realidade, pois o pensamento afirma, mas é a vida que o promove. E a vida, é sinonimo de existência, em qualquer dimensão. Daí que somos integracionistas, mas não somos por princípio ecléticos, pois na sua prática individual, cada cavador encontra a sua singularidade e o seu próprio fundamento e estilo independentemente. E quanto aquela noção de que a beleza está nos olhos de quem a vê, não é em última instância verdadeira, pois para além da beleza em si mesmo da obra, os meus olhos já foram bombardeados com imagens e estereótipos de beleza. Mas é mais uma vez na zona do meio, que estamos próximos de uma certa beleza que se impõe em si mesmo independentemente. Lá encontramos o seu rosto, o seu som, a sua metáfora, o seu movimento, a sua autocriação. A zona do meio é deliciosa, de uma angustiante, mas maravilhosa beleza existencial. O seu sentido traduz quase que fielmente, o fundamento ou o processo conceptual e artístico do trabalho a ser feito. A luta com a imagem, ou som ou palavra, ou movimento, será a tentativa de sacar e unir duas verdades. E para isso, será necessário durante o processo de pensar e criar, cavar para desvelar algo, alguma substância, algum conteúdo, ou mesmo nada. O artista desdobrasse, desvelasse, procura retirar as máscaras à sua imperfeita autenticidade. E seja ou não esteticamente agradável ao olho, ou ao ouvido, ou mente ou sensibilidade, o traço peculiar do pincel ou da guitarra, ou da expressão corporal, ou movimento, será o fruto luminoso dessa imensa luta caótica, suada ou não, húmida ou seca, sofrida ou prazerosa. Ou seja, um certo rasgo ou traço de estilo, revelará na sua singularidade, uma simbiose de sensações cavadas, novos afetos criados, novos modos de ser. Não será apenas a minha perceção de algo, mas serão esses algos mesmos, das coisas em si mesmas. Assim como um afeto é ser afetado por algo, uma nova sensação descoberta pode ser um novo afeto criado, sobre algo. Um cavador cavará, com a sua própria delicadeza e em verdade, a pérola de qualquer beleza em si mesma. Quanto aos curadores ou críticos, estes devem ser os mais próximos da fenda do artista, pois esse espaço reservado, deve ser interpretado intuitiva e cognitivamente, caso contrário qualquer informação escasseará o mais importante, pois omitirá a força que move o artista para a sua obra, e a energia de todo o processo, que caracteriza o espaço onde a obra se dá a conhecer. A fenda sustenta uma verdade, excelentes ideias e geniais pensamentos, forças e sensações em movimento e em repouso, luminosas energias e as suas diversidades, que em estado puro, clamam pela materialização de emoções em afetos. Contudo, a fenda não tem em si mesmo um conceito absoluto, mas apenas a diversidade das corpóreas e singulares raízes do criador, da obra e do mundo. No entanto, os processos de crescimento, de transformação e união daquelas raízes, mantêm a sua própria fidelidade, num constante conflito aberto, entre as várias auto posições e intenções. Sendo que, a obra será autêntica quando te desdobras e submetes às sugestões independentes e imprevisíveis, que ela própria e em si mesmo te solicita. E se o criador pensa e cria numa zona intermédia, espaço abertura ou frincha, que se situa entre ele próprio e a sua obra de arte, no entre do sujeito interno e do objeto externo, então, as várias raízes de artistas singularmente dispersos, se unidas horizontalmente entre si, criam uma zona do meio, uma outra fenda, entre o que eu sou e o que tu és. E em grupo, é na zona do entre que as personagens conceptuais ou as figuras estéticas, elementos sonoros ou movimentos, dos artistas ou autores, atores, músicos ou dançarinos, surgem. Se aparecem reais como são, ou ideais como deveriam ser, deve-se em simultâneo à escolha e intenção do artista, de acordo com o que ele verdadeiramente é ou deseja ser no seu estilo, e a uma inicial intenção do ser da obra, que inicialmente velado por detrás do material, tela, guitarra ou caderno, gradualmente se coloca em luta na conquista de sua posição. Cabe ao criador gerir o seu ego e submeter-se a esse apelo, deixar-se ser conduzido pelo ser da obra. A fenda tudo contém, dor e alegria, sensações e afetos, luz e sombra, perceções, mas não conceitos fechados que provêm do céu, pois a fenda tudo cria e tudo cura a partir de si mesmo. Como cicatriz original, o seu conteúdo não se encontra no nada nem no seu vazio, mas no trabalho que consiste em retirar alguma luz da sua sombra, e das suas raízes, que estão situadas nas costas da existência, onde tudo vibra aleatoriamente. Deste modo, para que da fenda algo surja, é necessário cavar bem fundo, sem medo, até ao caos, e assim sacar alguma verdade e alguma luminosidade, que sempre nasce morre e renasce como Aura, que conservará a obra no ato artístico, no movimento captado, nas imagens compostas, nas palavras discursadas, nos sons arremessados, nos corpos sobriamente embriagados, nas raízes e na alma de quem executa, de quem ouve, sente, pensa e observa. A fenda é apenas o portal de entrada para uma outra dimensão, onde o artista repousa após a sua dança imortal. A fenda é onde o pulmão deixa de respirar, as imagens desaparecem, as pálpebras adormecem, e o ouvido abafa e transforma o som num silêncio aterrador. É onde os ossos dançam e o sujeito morre por esgotamento, mas é quando a obra nasce verdadeiramente bela, quando fala por si mesma, grita, chora, reclama, ri e aguarda. E por vezes não sabemos porquê nem sabemos como. Nem as musas, detentoras de uma certa verdade peculiar, sabem. Porém, o problema é que alguns dos observadores, ouvintes ou espectadores da obra, não conseguem, ir além da mera aparência de uma obra e captar a sua intrínseca relevância. É quando o observador não está ao nível das intenções do artista e da sua correspondente obra. Pois a arte é cheia de vontade, não tenta apenas uma mera evasão dos sentidos, ela abre uma múltipla perspetiva de intensidades e de desejos. E por isso mesmo, o artista que deseja cavar, deve ser um rigoroso cavador de corpo e alma. A sua linguagem discursa e expressa intuições, esclarece e assombra, reduz intensidades luminosas e amplia deliciosas e obscuras violências. Nós cavámos com complexa simplicidade, estruturamos e desconstruímos mitos e ideias antes impraticáveis, pois somos filhos de uma outra historia, que não adota códigos de conduta, mas apenas tentativas de singulares interpretações, insignificantes e desorganizadas, de uma brecha ainda sem corpo, de um mundo ainda sem formula. Sim, somos críticos. Queremos salvar a negação da arte, que instalada pelos núcleos dos mercados, tentou reduzir a sua Aura até à extinção. Como pós contemporâneos, rejeitamos a morte da arte e do seu peculiar espaço. A verdade é que indústria e cultura é uma coisa aceitável, consumível, mas indústria e arte jamais. Daí que ser artista, também é honrar e preservar as constantes ameaças de exclusão feitas à nossa Aura e à nossa fenda. Na fenda, somos livres e afirmativos, superamos qualquer dicotomia, somos o mais próximo da loucura que nos inspira, somos um novo tipo de selvagens que pensam um novo sentido, um peculiar à priori sem definição ou interpretação estética, onde o artista empenhado, observa a novidade que ninguém vê. Pensa, e através do ato de criação, transforma ou desmancha, cria novos afetos e destapa novas consciências. Como pensadores criadores, ultrapassamos os limites do próprio pensamento, das análises logicas, dos sistemas e das suas estruturas. E evitamos aqueles que sabemos não têm qualquer legitimidade, para exercerem o poder que exercem sobre as pessoas e a arte. E sendo que algumas linguagens, tentam uma exata correspondência da realidade do mundo exterior, e apresentam o fenómeno das coisas tal como elas nos aparecem, e outras, em sentido inverso, tentam criar a realidade a partir da própria linguagem ou expressão, nós cavadores, desejamos em simultâneo, superar a nossa subjetiva visão e cavar mais fundo, em nós e na obra, ajudando-a a apresentar-se objetivamente despida, tal e qual como ela verdadeiramente é. Então, ao encontro da possível correspondência de uma verdade, abrimos a fenda para sobre ela cavar. Arriscamos criar uma verdade a partir de nós, pois cavamos e inventamos a nossa própria linguagem processual, numa luta de alucinantes intenções que se colocam em fenda. Somos os filhos de apolo e dionísio em desdobramento. Já não é mais o pensamento que pensa por nós, ou os afetos que nos afetam. O nosso à priori, provém da nossa própria singular zona do meio, pois ela está no constante devir de relações com a fenda, e a história apenas residualmente entra neste aleatório e intemporal espaço. Neste espaço ou dimensão, nascem novas poéticas e visibilidades, novas sonoridades e personagens criadas, pois em última instância, a fenda é inominavelmente e indefinidamente indescritivelmente tudo. Por isso, nós não queremos necessariamente reduzir o aparente a outra coisa qualquer, nem varrer nem limpar, queremos a verdade nua e crua, não queremos outra coisa senão a coisa, ou seja, a obra e a sua verdade na fenda. Na fenda, a arte é sempre o encontro de um desencontro. O artista, a partir do momento em que se instala na fenda, desintegra-se de si mesmo e recria-se constantemente. Toma consciência da sua singularidade e re-volta-se, des-dobra-se para si mesmo, tenta quebrar o feitiço da fenda, sua verdadeira musa, e do mundo. Porém, morre e renasce pela sua obra, afirma-se para morrer, através do seu inconstante e tão desejado reencontro fatal, naquela zona que fica entre o rio e as suas margens, entre a aparência e a substância, onde a aparente imaterialidade é mais real e verdadeira que a conhecida realidade. Nela, tu observas em simultâneo, a verdade da mais bela e limpa fachada e a sua inócua sujidade interna. É quando a fenda te impulsiona a inventar, a descobrir ou a encontrar por ti próprio, pois sendo a sua dinâmica sincrónica e arbitrária, sem lei alguma, tudo depende da idiossincrática constituição própria e única da persona que é o artista, da sua intenção e vontade, e do modo como a obra, também singularmente idiossincrática, se apresenta na discussão. Não somos radicalmente céticos, mas suspeitámos para nos superarmos afirmativamente na zona do entre, onde a fenda e a obra agem e reagem numa relação de forças com o artista. Em suma, todos desejamos o mesmo, desbravar o caminho, para que o desvelar da obra, que naturalmente vem para sujeitar, naturalmente aconteça.

Numa original representação proveniente da fenda, a obra tanto pode ser sobre alguma coisa, e requerer interpretação do seu conteúdo e significado, como pode ser sobre nada. E mesmo sendo apenas bela, ou fonte de algum prazer, se a obra é filha da fenda e da intenção do seu autor, então, a questão sobre se é ou não arte, não se coloca. Mas existem variadíssimas teorias da arte, e a maioria delas concordam, que a arte deve ter uma específica função. Pode ter, mas funções e referências são os cientistas que criam, assim como por princípio, são os filósofos que criam conceitos e não os artistas. Mas na fenda, o cavador tanto pode pensar e criar sensações e afetos em figuras estéticas, como criar sensações de conceitos em personagens concetuais, ou novas funções prototípicas sem qualquer referente científico, pois a dimensão do plano fenda é uma racha que atravessa o mundo. E enquanto que umas teorias focam a obra de arte em si mesmo, e procuram uma definição com um denominador comum para todas as artes, e outras focam-se nos estados mentais subjetivos do observador, e na sua particular atitude ou experiência estética, algumas outras, preocupam-se mais com o processo, ou por exemplo, com a sua dimensão social. Porém na fenda, nós englobamos tudo em planos distintos que se interligam, num processo de raízes e forças arbitrárias, que para além de integrar o artista e tudo o que ele traz consigo, concebe em simultâneo todo o seu espaço à obra, que como ser independente, impõe-se autonomamente, e exige ela mesmo, também em simultâneo, um profundo envolvimento e um total desapego do artista, que consequentemente, depois de se ter despido e mergulhado no caos para criar a obra, veste-se e aparece perante ela como sendo o único observador estético, que em consciência experienciou, o mistério da obra a instalar-se, no seu tímido desvelamento. E assim sendo, mais uma vez, os outros observadores ou ouvintes, apenas se aproximarão desta singular vertigem. Pois no que toca à expressão, se esta significa pressionar do interior para o exterior, então, quando o artista se coloca na fenda, ele foca-se na sua experiência subjetiva e cava, numa inquieta ou não, linguagem ou movimentação, que representa o seu profundo mundo interno de afetos e sentimentos. Contudo, é do exterior do sujeito, autor ou artista, que provêm os estímulos que geram as reações emocionais. São as sensações que provêm da fenda, dessa caótica zona do meio, onde as emoções e raízes que vagueiam aleatórias, misturam-se com a intenção do artista e com a energia da obra. Logo, e mais uma vez, os artistas, em geral, poderão por analogia identificar-se com essa experiência intrínseca, mas os observadores ou público, em geral, estarão com certeza mais afastados da veracidade daquela experiência. Contudo, uma questão apresentasse inadiável: pode o artista na fenda, subjetivamente explorar, a subjetividade do mundo exterior, e cavar a sua objetividade intrínseca? Se fores um verdadeiro cavador de fendas conseguirás perfurar a matéria, e através da tua arte, pôr a obra a comunicar e a expressar alegria ou raiva, mas também, coragem, cobardia, honestidade, assim como a força que está por detrás da sombra de um anjo, ou a energia de um espírito ancestral, pois na sua expressão, o conteúdo da arte é muito mais do que apenas emoção. O processo de criação artística, é também de descoberta imaginativa e de autodescoberta do autor e do ser da obra, que se desvela e se quer dar a conhecer. E na sua mente, o artista pode sentir e agir através da imaginação, e deste modo, trazer a emoção à consciência, expressando uma dor sem a sentir, pois a arte é também um veículo da ideia na mente do artista, que a coloca na sua imaginação. Mas não te iludas, tudo em última instância pertence a uma realidade ontológica, que em cada caso, decide revelar-se por singulares modos em particular, que não necessariamente a ideia, a imaginação ou a emoção, mesmo que não tenhas conceito para ela, pois as ideias estéticas, as imagens da arte, os sons, as palavras, são mais do que o próprio pensamento ou sentimento. O entendimento tenta explicar certas imagens ou sons, e as suas relações, mas as imagens ou sons, são sempre mais fortes e poderosos, assim como a metáfora de algo, um corpo em movimento, etc. Se a imagem ou metáfora, o poema ou composição, o som ou o movimento, fosse apenas ideia mental, sem a sua objetiva e particular expressão, nenhuma importância seria dada à obra em si e ao seu carácter, à coisa como objeto material plástico, como melodia, como coreografia, ou mesmo, à realização ou execução na fenda, daquele algo que se apresenta. Daí que, se para algo atingir o estatuto de arte, tivesse que ter, uma característica que fosse condição necessária, uma propriedade x ou denominador comum, no nosso caso, seria a existência de uma fenda, que abrangente e inclusiva, cheia de energias e intenções, se cruza com a obra na consciência do artista. E quanto ao facto de as obras de arte terem ou não uma determinada função, a sua intenção principal pode ser exibir uma forma ou um som significante, que desperte um estado mental ou emoção peculiar no observador. No entanto, tanto a forma como o conteúdo, são cavados na tua fenda, que em si própria tem a sua forma de ser, pois ela também é autónoma na sua pura vontade de gerar e criar. E sendo que a atração é despertada pela obra em si mesmo, e não pelo sujeito psicológico ou estético, então a obra é uma questão ontológica, existencial, que é gerada pela fenda, no entre das zonas do meio. Daí que a arte autêntica produzida na fenda, não deve ser um meio para um determinado fim utilitário. Nós, cavamos em desdobramento, e desviamos o objeto ou poema, coreografia artística ou harmonia musical, da sua comum aparência, para todos observarmos a sua verdadeira realidade. Assim sendo, a intenção do artista, pode muito bem ser, libertar essa alma formal da obra, através da narrativa, da metáfora, do som, do movimento. Pois se na vida real do nosso dia-a-dia, vivemos sujeitos a relações de causa e efeito, presos e submersos nessa rede de causas e consequências, na fenda, o artista ou autor, cava por entre a forma, e apresenta o outro lado da moeda, que como experiência estética, desligará o observador ou ouvinte da sua habitual resposta aos meros objetos do dia-a-dia. Assim, as obras deixam de ter uma interpretação utilitária e de serem catalogadas, para serem verdadeiramente observadas e interpretadas na sua complexa nudez. Em suma, o artista na fenda, destemido, revela o mundo tal como ele é, diferente daquela realidade para a qual nós estamos habitualmente formatados. Pois se olhamos para as obras criadas como meios e não como fins, associamos as coisas entre si e perdemos as relações das coisas em si mesmas. Então, na sua fenda, o artista liberta subtil e habilmente a prisão dessas associações, e cria uma obra que marginal, torna-se primordial, pois ela passa a valer por si só, provoque ou não, o que quer que seja. Assim, o observador é particularmente emocionado, porque através da obra de arte, ele tem metafisicamente acesso às coisas como fins em si mesmas, pois o artista ao procurar cavar e captar a coisa em si mesma, revela uma outra humanidade. É assim que o observador comum, ao estar perante objetos em si mesmos, poemas de carne e osso, sons que provêm de outras reais dimensões, atos ou ações desligadas de qualquer associação ou instrumentalização, tem perante os acontecimentos artísticos, uma peculiar reação de prazer ou de desconforto, que o faz pensar e questionar. A obra de arte é uma oferenda que se apresenta ao mundo, a realidade de uma verdade que não está encoberta. E para isso, é necessário cavar uma fenda e extrair algo original. Por entre as restrições nublosas do caótico mundo instalado, o artista ou autor, liberta-se da linguagem corrente e utilitária do dia-a-dia, para na sua fenda cavar e tentar aproximar-se de algo mais autêntico. A fenda é como uma clareira onde as coisas naturalmente acontecem. Onde o artista ou ator ou músico, cria um descerramento, uma abertura, um rasgão inicial, para que alguma realidade aconteça revelando-se. E para sacar algo que seja mais que uma mera coisa, devemos em primeiro lugar, pensar que a obra de arte é um processo de algo que está a pôr-se a si mesmo, em obra, num processo onde as coisas se tentam revelar nuas e desveladas. E para isso, é necessário observar a dinâmica e não colocar etiquetas, clichés ou chavões. Só depois dessa angústia, de uma existência sem utilidade, o artista tem uma nova visão de si próprio, da obra, do mundo, e das suas possibilidades criativas, pois o que provoca a obra de arte a desvelar-se lentamente na fenda, resulta de uma tensão entre a subjetividade do artista e do mundo objetivo que o rodeia. Por isso, a fenda está fora do mundo e do homem, nessa zona intermédia, composta por elementos muito difíceis de penetrar, captar e interpretar. É nesta luta entre o nosso subjetivo mundo, a sua objetividade extrínseca, e a desconhecida fenda, que as obras nascem. Talvez por este motivo existam limites de interpretação numa obra, pois o caracter único e singular de uma fenda é enigmático. A fenda e a obra, podem ter um sentido que vai para além daquilo que podemos captar, mesmo sendo que, a estética signifique uma peculiar sensibilidade de perceção ou compreensão pelos sentidos, relacionada com a experiência do público, dos leitores, ouvintes, observadores ou espectadores, ela refere-se a uma experiência ou atitude, a um peculiar estado mental de reação às obras de arte, mas que pode não ser suficiente. Por esse motivo, a estética foca mais a receção do sujeito, e a arte centra-se mais na própria obra em si. Daí ter surgido a tentativa de definir arte sem referir a experiência estética. No entanto, se o estatuto da arte está intimamente ligado a uma experiência estética, assim sendo, qualquer arte é um veículo para a experiência estética, e desse modo, os dois termos devem andar unidos. Contudo, é necessário estar consciente desta dicotomia e fazer uma distinção, para um melhor entendimento do valor da obra, que tanto pode ser para mero prazer e entretenimento estético, como para a revelação de algo mais profundo e mais relevante. E se através das obras que vemos, lemos ou ouvimos, nós obtemos experiências estéticas únicas, através daquela relação especial com as obras, relação que resulta num estado peculiar de contemplação, então, podemos dizer que para uma verdadeira perceção estética, um observador ou ouvinte, terá que incluir uma atitude altamente atenta e imensamente empática, de consciente apreensão daquele algo em si mesmo, que sem valor ou utilidade, se pode revelar surpreendentemente. Então, consequentemente, o artista ou autor, não deve apenas ter a intenção de criar apenas com a finalidade de provocar uma experiência ou emoção peculiar, mas acima de tudo, deve ter a intenção de despir a sombra de uma verdade, que insegura dos modos como se deixa apreender, esquiva-se, dança o movimento da fuga e da reconciliação, seduz por intenção e ingenuidade, abraça e esfaqueia-te se necessário for, mas vai-se revelando. Aparece e desaparece por entre linhas e sons, palavras e movimentos. E o mesmo acontece com o observador, que para libertar-se da sua habitual visão velada, deve ter a intenção de despir a sua sombra, para uma verdade que ele próprio pode não estar preparado, pois tudo depende de vários fatores, elementos e contextos. E assim, uma vez dentro da fenda, o homem morre perante a sua obra para dar lugar ao artista, que com a sua pá, cria nesta zona do meio sensações peculiares, afetos profundíssimos, perceções surpreendentes, ruidosas ou silenciosas, mas de uma ternura assombrosamente encantadora. Cabe ao espectador estar à altura e atentamente interessar-se pela obra em si mesmo, e por todo o processo, tenha ele que se distanciar psiquicamente, devido à intensidade intimista de uma obra muito subjetiva, sensualista ou idealista, ou que se envolver a fundo, perante uma obra mais objetiva, que espirituosa ou realista, já contém em si mesmo alguma distância. Mas também precisamos compreender, que todos estes termos ou conceitos, podem não passar de um doloroso mito, porque na sua verdade, a beleza do que é feio é tão importante quanto a beleza do que é belo, pois ambas têm a sua realidade e a sua verdade. Isto é, a arte detém verdades e é fonte de conhecimento, mas não de verdades lógicas, demonstrativas, proposicionais e gerais sobre o modo como as coisas funcionam objetivamente, mas de profundas verdades aplicadas ao entendimento da nossa experiência da realidade, do mundo e da vida, pois este não é o mundo natural da ciência, mas o mundo da natureza e da condição humana, sendo este um grande valor a preservar para as obras de arte, mais do que qualquer definição sobre a sua essência. Por isso existem obras mais profundas e autênticas e outras menos consideradas. Sendo que, todas as tentativas de definir a arte por meio de uma definição, fracassaram. E contra todas as teorias, surgiu a profunda convicção de que a arte seria necessariamente indefinível, um conceito aberto, que fundamenta o facto de que a prática da arte, está sempre aberta a mudanças revolucionárias de expansão e inovação sem limites. Logo, o conceito de arte não pode ser fechado, deve ser aberto para ser coerente com a nossa constante criatividade artística na fenda. Contudo, o problema é que se o conceito é demasiado aberto e muito abrangente e inclusivo, parece que tudo ou qualquer coisa pode ser arte. Dai que, usualmente, para se reconhecer uma obra, tenta-se perceber alguns traços de afinidade, mesmo que descontínuos e entrelaçados, com outras obras já consideradas arte, ou seja, certas semelhanças que ela contém com outros estilos ou movimentos artísticos. Muito bem. Mas um autêntico cavador de fendas, que na escuridão da sua alma, luta para trazer a pura intenção de um ser que ainda ele próprio desconhece, pode ser um solitário, que cria as suas obras fora de qualquer instituição ou entendimento, fora do convencional, do social, do popular, ou do mundo da arte, do mercado e das suas massas e elites. Mas o que não pode, é ser carente de intenção, caso contrário, mesmo que uma obra de arte, devido à sua independência e autonomia, se imponha por defeito a um sujeito comum, que ao acaso tirou umas fotos, a obra não o transformará em artista, muito menos em cavador. Pois um cavador solitário, fora do mundo da arte, ainda que não possua, o seu próprio conceito de obra de arte cavado e cravado na sua mente, pode fazer arte, desde que tenha a intenção necessária, de um criador que produz uma obra, seja pintura, instalação, poesia, música, dança, teatro, performance, vídeo ou fotografia, pois a necessidade de uma intenção, é algo que sempre permaneceu e permanecerá como condição necessária. Uma obra pode ser reconhecida ao ser integrada em qualquer movimento da história da arte, mas acima de tudo, deve ser reconhecida em simultâneo, pela nobre intenção do artista de a criar e de a expor, para que seja observada, ouvida ou interpretada, pelo mundo. Sendo que o ideal, será não invocarmos sequer o conceito de obra de arte, pois a arte não é um conceito com condições necessárias e suficientes que é aplicado a casos particulares. Pelo contrário, ela é uma singular criação em si mesmo, um ser que necessita do seu verdadeiro e real reconhecimento como ser único que é. E porque existe dificuldades em absorver a realidade da fenda, e a sua oferta de um processo que contém pensamento e criação original, o mais correto é discursar com o cavador de fendas, sobre esse mesmo processo, os seus contornos e dificuldades, o seu contexto, incluindo as razões por detrás das suas escolhas e influencias, se este já tiver consciência do seu próprio processo criativo na fenda, que sendo doce, é por vezes enigmática e resistente na sua abertura. Nela, a obra tanto se abre como se fecha, tanto se descobre como se encobre, tanto se impõe como se retira, aos olhos ou ouvidos ou mente ou sensação do artista, deixando por vezes um traço de irracionalidade imprevisível e indecifrável. Por isso, na maioria dos casos, são os próprios artistas, que conferem a uma obra, o estatuto de candidata a ser apreciada, pois criam-na com o intuito de a expor ao mundo, para que as pessoas as possam apreciar, avaliar e compreender. Contudo, em determinadas situações, a pessoa que confere o estatuto, pode não ser quem a criou, pois podem ser outros a desempenhar esse papel ou função. Sendo que, é o entendimento da arte, da sua história, estilos, movimentos, teorias e práticas, que podem habilitar uma pessoa a agir em nome do mundo da arte, como alguém que confere o estatuto de candidato à apreciação. Pode ser um curador, um crítico, um agente do artista, um produtor ou um galerista, a eleger uma obra como sendo candidata à apreciação colocando-a em exposição ou em palco ou em livro, para ser vista ou escutada. Mas as obras candidatas a obras de arte, não têm que respeitar certas regras e procedimentos do círculo da arte. Um cavador de fendas não tem que necessariamente agir em nome de nenhuma instituição ou sistema pré-definido. A obra é criada, candidata a ser apreciada, e ponto. Não tem que na sua intenção, navegar nas asas do mercado como uma mera e simples mercadoria que irá ter ou não estatuto, através da apreciação do mercado e dos seus jogos de marketing. O artista não pode estar amarrado aos desejos e necessidades da população, que criadas e desenvolvidas para o mercado, servem para serem preenchidas desmesuradamente e sem critério. É irónico notar, que o próprio artista, não confere o estatuto de obra de arte à sua obra, pois ele apenas confere o estatuto de ser candidata a uma apreciação, dos observadores ou ouvintes. Contudo, em nome do mundo da arte, devem ser os artistas que em primeiro lugar, e em função do seu conhecimento na mesma área, devem depois de uma apreciação, conferir a uma obra, o estatuto de obra de arte. Sendo que, do mesmo modo, qualquer sujeito do mundo da arte, que proponha candidatos à apreciação e tente fornecer estatuto às obras, também o deve fazer com integridade, com verdadeiro entendimento e com conhecimento de causa, com uma experiência que lhe dê autoridade para conferir estatuto, em nome de uma arte autêntica e não de uma mercadoria bonita. Podemos agora perceber, que o carácter redutor das classificações filosóficas, ainda que auxiliares para percebermos a arte, só por defeito ajudam, a cavar mais fundo na fenda, pois as teorias já não pensam a obra de arte, é a obra que na sua criação pensa teorias.

Habitar a fenda, é criar por entre turbulentas e clarividentes caminhadas internas submersas em batalhas do pensamento, e observar a insondável verdade de uma obra que se esbarra em si mesmo. É quando o pensamento dá conta de si, quando a cabeça bate por dentro contra limitações e condicionantes molduras sistémicas. É quando a vontade é pelo cérebro esticada, até que uma brecha ou fissura estala, para que um outro pensar, crie violentamente o impensável, o impossível, o desejado, a obra e o seu acontecimento traumático na sua perturbante beleza. É quando uma representação pictórica se desdobra em obra e se expressa linguisticamente no horizonte de uma consciência, que ainda sem território, procura a sombra de uma raiz. A fenda é a fonte de uma força voraz da vontade, que transforma a emoção em matéria, em ossos que milagrosamente respiram sons e palavras em perfeito delírio. E a obra, assente na sua raiz, ondula sem linhas, sem palavras, por entre territórios ainda insonoros, sem veias ainda, e sem órgãos. Por vezes, só o sacudir da carne em oscilações pode restaurar a fenda. É quando o cavador dança a brusca demolição da raiz de uma sombra, e as forças assombrada-mente brilham como raios que sustentam a obra na fenda. É quando observamos o encanto de uma obra e a sua deliciosa vulnerabilidade. É quando a obra se encolhe sobre o seu próprio corpo aconchegante, e devora as almofadas da inutilidade. Ela deita-se na tua fenda, aguarda o teu antagonismo, o teu vigor e a tua ternura. E tu, preenchido por uma intensa e potente intenção, deixas de viver loucamente marginalizado, passas a viver duplamente desdobrado e em amorosa carne ensanguentada, a dolorosa realidade do ser e do não ser, dividido pelas transformações da fenda, da obra, e do mundo. Um cavador sente o crescimento das árvores, que em noites sombrias refletem, pelo entre dos seus ramos, a força de uma outra luz. É quando as imagens e os sons e as palavras, humedecem dionisíacos ângulos e os corpos deliciosamente despidos vergam-se por entre as suas próprias raízes. É quando o cavador, hipnotizado, perde a noção do tempo, acorda com o pulmão no cérebro, e levanta-se apenas com o que possui: nada, para além de uma recordação da sua fenda. E recomeça de sombra em sombra, na expectativa de atingir a plenitude da sua obra. E tenta pintar-se por detrás de uma tela, escrever por detrás de uma folha, pelo entre linhas de um som, ou pelo entre dos movimentos em fuga. E pinta, escreve, dança e canta, do avesso, sem pele e sem ossos, sem nervos e sem olhos, com os órgãos já fragmentados pela ilusão de um fenómeno, que se desdobra e se afirma como obra. É quando o cavador já extinto, cava a sua esperança numa zona húmida da fenda, e nesse jardim, semeia o fruto da sua obra. Escreve e desenha, pensa e observa, e toca com a sua pá que manobra sem olhos, sem ouvidos e já sem língua. É quando toma consciência do poder da obra, quando ela se impõe e arrasa. Pois por vezes, ainda sem nervos e sem pulso, incorporada no meu sangue em volúpia e encostada aos meus ossos cortantes, toda a beleza da obra vem de uma só vez até mim. E em cada pensamento uma nova sensação, e em cada pincelada um novo afeto criado. E todo o meu eu se funde, no sonho da fenda e na realidade da obra. De pé e de joelhos, dobrados ao amanhecer do teu olhar, exausto e em extremo júbilo, atormentado e enfeitiçado pelos teus gestos inacabados, eu aguardo o prometido, o insólito, o proibido. E em delicada soberba tortura, sem sentido, estou só, com a obra na minha frente. Jamais encontrarei conceitos para identificar tantos afetos. Só a fenda os poderá mencionar. No entre da própria fenda, acaricio a alma da obra e desperto em rebeldia, nessa tua zona intermédia. E no limbo da sã loucura, sofro o maior dos prazeres, observo a tua Aura, que ainda rodopia e dança, na zona do entre, sobre a imagem que ainda se desdobra, à espera de uma história, que não existe. E eu luto, corto as raízes da tua terra celestial, para que a tua história se desfaza de uma só vez. E nada. Como um rio transparente, que desliza pelas bermas e por dentro da noite branca, em silencio, a obra bate no meu rosto pela manhã das tuas curvas. A minha linguagem, é agora o fracasso do teu rosto bem sucedido, que atrai o ar dos meus pulmões, e a força, que o fogo do meu coração exala. Pudesse eu, demonstrar com rigor e luz, o respirar trivalente, daquela zona intermédia do entre, onde as sensações correm em bloco, indeterminadas, sem cor ainda, puras e sonâmbulas, como fantasmas visíveis, em contrapontos que. Forças que nos afetam se. Eis a região onde os conceitos são ainda visões de acontecimentos possíveis, de virtualidades abertas, de eventos aleatórios, de laços e de imanências em estado bruto, independentes, indomáveis. A luz respira, o mundo dobra-se, e em si, a obra, em sombrios batimentos de carne, desperta do seu sono sem dogmas, sem veias e sem útero, e sem órgãos ainda. O teu sorriso neutro e o teu olhar perturbante, é como o desejo que arde em sémen, que repousa no coração de uma mente que insatisfeita vibra, nas delícias do teu jardim. E pelas sombras da fenda, em afetos líquidos, sobrevoo a tua figura, composta de frágeis laços, de um tom afiado, mas sempre belo. E aquele reflexo da condição humana é agora a obra em escuta, no insonoro silencio de um mundo aparentemente composto, de traços e linhas e forças, e sons e palavras, e movimentos que dançam sobre si próprios. E o artista despe-se e a obra nasce no coração da fenda, que como lava de animal em vulcão, rebenta-se por intimidades e devora-se em núcleos até à orla do entre, que sagrado e em chamas, explode pela garganta do submundo. E os estilhaços de papel, de tinta, de sons e palavras e discursos feitos de carne, contêm premissas de violino ferido, que implodem até ao fundo das tuas raízes estáticas. E os meus tendões ainda com nervo. E os meus órgãos todos paralisados. E a minha cabeça tomba sobre a tua. E a verdade subjaz, intranquila. É o regresso invertido e desvelado da obra no seu melhor. É quando tu encarnas e fazes o teu teatro, com esses olhos morais e doces, que por entre garras de vento, à espera de um doce, desvelam a claridade da tua lágrima secreta, que escorre pelos meus cabelos até aos seios da tua própria fenda. Eis uma lágrima de carne carinhosamente violenta, que sempre encanta, com a voz de um paradigma outro. E o vento bate forte no peito, perfura os ossos até aos cabelos. E o sangue, estala por dentro, até à cabeça toda. Os músculos alongam e faíscam como sons de tinta em movimento. As raízes, alinhadas, esperam o seu fuzilamento. É o sangue dos rios que o cavador procura. E é o seu desejo arcaico, que em vapor procura, um jovem pensamento. É a vontade toda ela, que se abraça em elogios e apologias, veste-se e despe-se, até à ranhura da tua fenda, que se abre em fechamento, embriagada pelo teu sentimento do outro e pelo teu mesmo em desdobramento. Cavador, continua a cavalgar por entre a chuva da chuva que bate dentro da alma toda, e que bate até nas mãos, que trémulas, carregam o cérebro pela noite toda a dentro. A fenda é toda ela perfumada, não é um monstro que alado e alienado te engana, pois ela é o amanhecer da tua suprema ternura. E mesmo que fustigado e dorido pelas cicatrizes impostas, eu aguardo pela próxima revelação da obra, pois somos aliados inimigos que lutam por uma irrepetível verdade. E ainda que angustiado pelo absurdo da vida, na fenda, eu derreto as vísceras à procura do teu reenconto. Não enlouqueço porque seguro nas mãos o meu coração em pedra, que luta com o meu cérebro incandescente e em constante desconstrução permanente. Sou bélico, não me amedronto quando sou pela obra degolado, pois retenho, conservo e domino, as forças aleatórias da fenda, e os gritos que nela se instalam, a dor que alguma verdade observa, e a verdadeira alegria de um cavador de novos afetos e sensações. E a fenda, na sua aparente ilusão, apresenta-se realmente, para que o cavador desdobre a pele, e revele o desvelar profundo de uma obra em plena liberdade. Na fenda, sentirás a evidencia do infinito, que zela pelos pensadores e criadores artistas. Por vezes, sinto amor, sinto raiva e sinto loucura. Odeio as fenoménicas figuras que em sádico detalhe pelos dias a fenda me envia. E só consigo amar as quentes luzes do lampião exterior, que de amarelo sereno ilumina, a essência das minhas visões. Mas és sempre tu que tranquilizas o fermento do meu temperamento. E eu acaricio a tua obra, com café negro e cigarros brancos, perdido na noite pela sedução do teu jardim, que vagueia na minha mente. E amo a incondicionalidade e o devir dos meus passos, e o turbilhão dos meus obscuros pensamentos. E caminho sem sabedoria, por dentro da fenda, à procura de um local para repousar em descanso, os tenros ossos, que gritam de ternura o avesso da carne, que lambe os meus rebeldes sentimentos. E ao ser por ti fuzilado, reencarno na tua fenda, para te pintar com o cruel olhar das minhas palavras não ditas. E repouso no teu pulsar vigorante, aproprio-me da tua beleza e tento mergulhar pela tua porta ainda vedada, pela tua suculenta e inteligente carne. E salto, embrulhado em arames farpados, numa existência sem inicio e sem fim, sem conhecimento de mim. Mas na fenda, os meus pés jamais sangram para fora, penteiam-se no interior de uma incolor viagem, sem vento e sem respiração possível. Musa, eu deveria devorar a tua pele. Mas eu creio no que não creio, na vontade pela qual sou engolido, pois a fenda, chicoteia a circunstância, que discursa por entre as massas alucinadas. Ela é o princípio sem núcleo e o fundamento primeiro. E eu sou o grande animal desfeito com a lágrima congelada no limbo das tuas costas. Sou a sombra que percorre o teu centro na micro-zona do teu altar. E tento desdobrar-me de quatro em quatro vezes para pintar o teu deslumbramento em beleza total. A tua obra abre-se, e na dança noturna eu morro por ela, por entre o elemento do vazio e do espaço neutro, que entre os nossos corpos tu deixaste. Aqui, onde nunca ouve lugar para falsas modéstias, nem orgulhosos jogos de mercadorias, mas apenas para quem existe na louca adversidade da zona intermédia, onde se fazem os pensadores e artistas, poetas, músicos e dançarinos, e as suas musas e fendas.

Alvaro Alexandre 2018
A minha foto
Alvaro Alexandre (1971) nasceu, vive e trabalha em Guimarães. Licenciado em Filosofia pela Universidade do Minho e com formação em Aconselhamento por Ramadas Counselling em Leiria, exerceu Psicoterapia durante alguns anos. Porém, com curso de Desenho na Academia de Artes e Técnicas em Guimarães e Art Life Drawing no Weston College em Weston/super/Mare, Inglaterra, dedicou-se desde sempre e em simultâneo às Artes plásticas. Desde então, passou por variados estilos ao longo do seu próprio desenvolvimento artístico. Contudo, foi a partir de 2015 que passou a dedicar-se exclusivamente à pintura, desde então, escreveu um manifesto artístico, produziu uma flash mob multidisciplinar e realizou uma performance. Neste momento, trabalha a tempo inteiro na criação de obras a óleo sobre tela para os seus projectos, sendo a figura humana o modelo ou a expressão poética de sua preferência.

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